terça-feira, 1 de setembro de 2015

Meninos perdidos do Sudão: a história que virou filme

Meninos perdidos do Sudão” é o nome dado aos mais de 20 mil jovens de várias etnias sudanesas perseguidas que procuraram proteção em campos de refugiados durante a 2ª guerra civil no país (1983-2005), que provocou mais de 2,5 milhões de mortes. “Uma boa mentira” retrata a história de quatro desses meninos, a partir da destruição de sua aldeia e a morte de seus pais, sua caminhada ao longo de desertos e savanas para chegar a um campo de refugiados no Quênia, e anos depois ser acolhidos nos Estados Unidos. O filme retrata as nuances sociais e psicológicas de imigrantes marcados pela violência da guerra, tentando se adaptar a uma nova cultura, em uma nova sociedade. O filme também gerou controvérsias quanto ao ponto de vista dos Estados Unidos como salvador da situação e a atriz branca estampando os cartazes de divulgação do filme apesar de ela ser personagem secundária na história. Polêmicas a parte, ao longo da história as culturas se misturam e percebemos que por mais difícil que seja a adaptação, toda pessoa pode se apropriar dos elementos culturais e sociais da sociedade em que está inserida, basta que se sinta acolhida. (Jade Vilar)


Resenha de “A Boa Mentira”
Por Samantha Martins
O filme é sobre crianças do Sudão do Sul, que fugiram de suas vilas após a guerra civil. Elas se deslocaram mais de 1.000km até um campo de refugiados no Quênia. Ou seja, os protagonistas da história são pessoas negras. Várias crianças negras que passam a adolescência e parte de sua juventude em um campo de refugiados.

O QUE QUE A REEESE WHITERSPOON TÁ FAZENDO NA CAPA?
Vocês vão argumentar que ela é uma atriz famosa, ganhou o Oscar, etc. Mas gente, ela não é a protagonista do filme! O filme não é sobre uma moça branca!!! Reparem que o comentário destacado na parte inferior direita (do The Wall Street Journal) também é sobre Reese. Depois que assisti ao filme (meu colega é legal, não deu spoilers rs) e vi a capa, fiquei um tempo tentando entender isso. E a resposta é clara para mim: racismo institucionalizado. Se colocassem na capa os atores negros, que são desconhecidos do grande público, o filme não chamaria a atenção nos cinemas e depois nas prateleiras.
Achei o trabalho de Arnold Oceng, que faz o papel de um dos protagonistas, o jovem Memere, fantástico. Tudo começa quando Memere, sua irmã Abital, seu irmão Theo e seus amigos são crianças. Eles estão em um dia normal em sua vila. Brincando, cuidando do gado, com seus afazeres cotidianos em geral, etc. Quando um bombardeio ocorre em sua vila. Os adultos morrem, mas algumas crianças conseguem sobreviver. Theo, o mais velho, lidera seus irmãos e amigos numa fuga que segue na direção sudeste. O objetivo é atingir um campo de refugiados no Quênia. Pelo caminho, eles encontram outras crianças que também fugiram de suas vilas. Acabam conhecendo Jeremiah e Paul e os adotam como irmãos.  Na fuga, as crianças enfrentam um trajeto muito difícil: pés machucados, doença, fome, cansaço, sede, soldados pelo caminho (que matam, escravizam ou recrutam as crianças), etc.
O trabalho dos atores é muito bom porque eles viveram isso: são refugiados ou filhos de refugiados. Levar sua história para as telas deve ser um enorme desafio, mas que certamente valeu muito. O trabalho deles foi impecável e também destaco o trabalho das crianças, também sudanesas. O filme convence muito em termos culturais. Eu não conheço a cultura sudanesa, mas observei que os atores falam uma mistura de inglês com outra língua, que pelo que pesquisei deve ser o dinka e/ou o nuer.
O contexto histórico do filme são a Primeira e a Segunda Guerra Civil Sudanesa. A história começa durante a infância dessas crianças, provavelmente durante a Segunda Guerra Civil Sudanesa. Várias questões motivaram essas guerras: disputa de minérios (o Sudão do Sul é rico em petróleo) e disputa religiosa (o norte do Sudão é de maioria muçulmana, enquanto o sul é cristão ou animista). O cristianismo é presente no filme: Jeremiah não desgruda da Bíblia que conseguiu salvar de sua vila e é professor de Escola Dominical.
A Segunda Guerra Civil Sudanesa durou 21 anos e deixou mais de dois milhões de mortos. Foram mais de quatro milhões de refugiados ou deslocados internos. Foi o conflito que mais matou civis desde a Segunda Guerra Mundial. E eu pergunto para meus leitores: vocês aprenderam isso na escola? Aposto que poucos dirão que aprenderam. Como quando escrevi o post sobre a Guerra Civil de Ruanda (na resenha de “Sobrevivi para Contar). Aposto que poucos sabiam disso e o pior: quando esses conflitos aconteceram, já tínhamos uma imprensa bem equipada que poderia fazer uma cobertura melhor e mais abrangente. É evidente que não há representatividade alguma na imprensa.
Outro fato que me irritou no filme é a presença de Reese como “salvadora”. O branco como “salvador” dos negros. E a difícil jornada dessas crianças por mais de 1.000km? E o empenho em se ajustar na vida em um novo país?  A personagem de Reese não faz nada além de seu trabalho, de sua obrigação. E o trabalho humanitário é uma obrigação da ONU, uma obrigação de países ricos que quase que em sua totalidade exploraram o continente africano.
Até quando a dignidade e a força de vontade dos refugiados será deixada em segundo plano nesses filmes? Eu fiquei com essa impressão em “A Boa Mentira”. Vejam bem, o filme é bom em muitos aspectos que já mencionei. Além deles, retrata também a vida em um campo de refugiados. Mamere e seus irmãos vivem muitos anos por lá e eventualmente conseguem asilo. Infelizmente, muitos países deixaram de dar asilo a refugiados depois do 11 de Setembro. E Mamere tem poucas esperanças de rever seu amigo e seu irmão recomeçando a vida em outro país, oportunidade que ele teve.
Anos depois, o campo de refugiados onde viveram Mamere, seus amigos e seus irmãos é mostrado novamente. É um lugar ainda mais desorganizado. Uma pequena cidade de 100.000 habitantes, muitos desesperançosos de um dia deixar o local. Ou seja, a situação fugiu totalmente do controle e as pessoas não têm mais esperança de recomeçar.
Outro ponto interessante no filme é a diferença cultural. Quando as crianças veem uma pessoa branca pela primeira vez, acreditam que “elas não têm cor” ou “elas não têm pele”. Quando chegam nos EUA, não conseguem se adaptar inicialmente aos seus empregos. Eles não conseguem dormir em camas: colocam os colchões no chão para dormir juntos. E andam de mãos dadas. E já são jovens adultos! Esses jovens criaram entre si um elo muito forte. Esse elo certamente foi o que os fez sobreviver. Um ditado africano muito bonito é inclusive mencionado:
Se ir andar rápido, ande sozinho. Se quiser ir longe, vá em grupo”.
Apesar dessa questão cansativa, clichê e absurda da “síndrome do homem branco salvador”, o filme é bom. Pois nos motiva a querer aprender mais sobre os sudaneses, sobre as guerras e sobre a história desses órfãos. Esses órfãos inclusive têm um nome: os garotos perdidos do Sudão.




Link: http://meteoropole.com.br/2015/01/resenha-de-a-boa-mentira/

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário será publicado em breve.