“Meninos
perdidos do Sudão” é o nome dado aos mais de 20 mil jovens de
várias etnias sudanesas perseguidas que procuraram proteção em
campos de refugiados durante a 2ª guerra civil no país (1983-2005),
que provocou mais de 2,5 milhões de mortes. “Uma boa mentira”
retrata a história de quatro desses meninos, a partir da destruição
de sua aldeia e a morte de seus pais, sua caminhada ao longo de
desertos e savanas para chegar a um campo de refugiados no Quênia, e
anos depois ser acolhidos nos Estados Unidos. O filme retrata as
nuances sociais e psicológicas de imigrantes marcados pela violência
da guerra, tentando se adaptar a uma nova cultura, em uma nova
sociedade. O filme também gerou controvérsias quanto ao ponto de
vista dos Estados Unidos como salvador da situação e a atriz branca
estampando os cartazes de divulgação do filme apesar de ela ser
personagem secundária na história. Polêmicas a parte, ao longo da
história as culturas se misturam e percebemos que por mais difícil
que seja a adaptação, toda pessoa pode se apropriar dos elementos
culturais e sociais da sociedade em que está inserida, basta que se
sinta acolhida. (Jade Vilar)
Resenha
de “A Boa Mentira”
Por Samantha Martins
O
filme é sobre crianças do Sudão do Sul, que fugiram de suas vilas
após a guerra civil. Elas se deslocaram mais de 1.000km até um
campo de refugiados no Quênia. Ou seja, os protagonistas da história
são pessoas negras. Várias crianças negras que passam a
adolescência e parte de sua juventude em um campo de refugiados.
O
QUE QUE A REEESE WHITERSPOON TÁ FAZENDO NA CAPA?
Vocês
vão argumentar que ela é uma atriz famosa, ganhou o Oscar, etc. Mas
gente, ela não é a protagonista do filme! O filme não é sobre uma
moça branca!!! Reparem que o comentário destacado na parte inferior
direita (do The Wall Street Journal) também é sobre Reese. Depois
que assisti ao filme (meu colega é legal, não deu spoilers rs)
e vi a capa, fiquei um tempo tentando entender isso. E a resposta é
clara para mim: racismo institucionalizado. Se colocassem na capa os
atores negros, que são desconhecidos do grande público, o filme não
chamaria a atenção nos cinemas e depois nas prateleiras.
Achei
o trabalho de Arnold Oceng, que faz o papel de um dos
protagonistas, o jovem Memere, fantástico. Tudo começa quando
Memere, sua irmã Abital, seu irmão Theo e seus amigos são
crianças. Eles estão em um dia normal em sua vila. Brincando,
cuidando do gado, com seus afazeres cotidianos em geral, etc. Quando
um bombardeio ocorre em sua vila. Os adultos morrem, mas algumas
crianças conseguem sobreviver. Theo, o mais velho, lidera seus
irmãos e amigos numa fuga que segue na direção sudeste. O objetivo
é atingir um campo de refugiados no Quênia. Pelo caminho, eles
encontram outras crianças que também fugiram de suas vilas. Acabam
conhecendo Jeremiah e Paul e os adotam como irmãos. Na fuga,
as crianças enfrentam um trajeto muito difícil: pés machucados,
doença, fome, cansaço, sede, soldados pelo caminho (que matam,
escravizam ou recrutam as crianças), etc.
O
trabalho dos atores é muito bom porque eles viveram isso: são
refugiados ou filhos de refugiados. Levar sua história para as telas
deve ser um enorme desafio, mas que certamente valeu muito. O
trabalho deles foi impecável e também destaco o trabalho das
crianças, também sudanesas. O filme convence muito em termos
culturais. Eu não conheço a cultura sudanesa, mas observei que os
atores falam uma mistura de inglês com outra língua, que pelo que
pesquisei deve ser o dinka e/ou o nuer.
O
contexto histórico do filme são a Primeira e a Segunda Guerra Civil
Sudanesa. A história começa durante a infância dessas crianças,
provavelmente durante a Segunda Guerra Civil Sudanesa. Várias
questões motivaram essas guerras: disputa de minérios (o Sudão do
Sul é rico em petróleo) e disputa religiosa (o norte do Sudão é
de maioria muçulmana, enquanto o sul é cristão ou animista). O
cristianismo é presente no filme: Jeremiah não desgruda da Bíblia
que conseguiu salvar de sua vila e é professor de Escola
Dominical.
A
Segunda Guerra Civil Sudanesa durou 21 anos e deixou mais de dois
milhões de mortos. Foram mais de quatro milhões de refugiados ou
deslocados internos. Foi o conflito que mais matou civis desde a
Segunda Guerra Mundial. E eu pergunto para meus leitores: vocês
aprenderam isso na escola? Aposto que poucos dirão que aprenderam.
Como quando escrevi o post sobre a Guerra Civil de Ruanda (na resenha
de “Sobrevivi para Contar”).
Aposto que poucos sabiam disso e o pior: quando esses conflitos
aconteceram, já tínhamos uma imprensa bem equipada que poderia
fazer uma cobertura melhor e mais abrangente. É evidente que não há
representatividade alguma na imprensa.
Outro
fato que me irritou no filme é a presença de Reese como
“salvadora”. O branco como “salvador” dos negros. E a difícil
jornada dessas crianças por mais de 1.000km? E o empenho em se
ajustar na vida em um novo país? A personagem de Reese não
faz nada além de seu trabalho, de sua obrigação. E o trabalho
humanitário é uma obrigação da ONU, uma obrigação de países
ricos que quase que em sua totalidade exploraram o continente
africano.
Até
quando a dignidade e a força de vontade dos refugiados será deixada
em segundo plano nesses filmes? Eu fiquei com essa impressão em “A
Boa Mentira”. Vejam bem, o filme é bom em muitos aspectos que já
mencionei. Além deles, retrata também a vida em um campo de
refugiados. Mamere e seus irmãos vivem muitos anos por lá e
eventualmente conseguem asilo. Infelizmente, muitos países deixaram
de dar asilo a refugiados depois do 11 de Setembro. E Mamere tem
poucas esperanças de rever seu amigo e seu irmão recomeçando a
vida em outro país, oportunidade que ele teve.
Anos
depois, o campo de refugiados onde viveram Mamere, seus amigos e seus
irmãos é mostrado novamente. É um lugar ainda mais desorganizado.
Uma pequena cidade de 100.000 habitantes, muitos desesperançosos de
um dia deixar o local. Ou seja, a situação fugiu totalmente do
controle e as pessoas não têm mais esperança de recomeçar.
Outro
ponto interessante no filme é a diferença cultural. Quando as
crianças veem uma pessoa branca pela primeira vez, acreditam que
“elas não têm cor” ou “elas não têm pele”. Quando chegam
nos EUA, não conseguem se adaptar inicialmente aos seus empregos.
Eles não conseguem dormir em camas: colocam os colchões no
chão para dormir juntos. E andam de mãos dadas. E já são jovens
adultos! Esses jovens criaram entre si um elo muito forte. Esse elo
certamente foi o que os fez sobreviver. Um ditado africano muito
bonito é inclusive mencionado:
“Se
ir andar rápido, ande sozinho. Se quiser ir longe, vá em
grupo”.
Apesar
dessa questão cansativa, clichê e absurda da “síndrome do
homem branco salvador”, o filme é bom. Pois nos motiva a querer
aprender mais sobre os sudaneses, sobre as guerras e sobre a história
desses órfãos. Esses órfãos inclusive têm um nome: os garotos
perdidos do Sudão.
Link:
http://meteoropole.com.br/2015/01/resenha-de-a-boa-mentira/
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