terça-feira, 2 de junho de 2015

Conexão Suíça-África: casei- me com um samburu

Reprodução/ A Massai Branca
O Samburu, do Quênia, é um dos grupos que compõem 19% das etnias minoritárias do país. Trata-se de um povo nômade e, por isso, suas casas são construídas de forma que possam ser desmontadas facilmente. As construções utilizam apenas barro, couro e grama. Na sociedade Samburu, as mulheres têm o clitóris removidos na infância, são tratadas como propriedade dos homens e sequer podem comer com eles. Conheça a história do livro, que virou filme, A Massai Branca (The White Masai), baseado na autobiografia de Corinne Hofmann, suíça, empresária bem-sucedida e rica, que largou tudo e foi morar na África ao se apaixonar por um guerreiro Samburu. (Jade Vilar)

Antropologia jurídica:
cultura e direito no filme “A Massai Branca”
Érica Barbosa e Erinaldo Ferreira

O filme A Massai Branca, uma produção alemã de 2005, dirigida por Hermine Huntgeburth, conta a história de uma turista suíça em visita ao Quênia, onde conhece um guerreiro Samburu. Uma atração inicial, mostrada pela cumplicidade na troca de olhares, aproxima o casal e dá início ao relacionamento tratado na filmagem.
Carola é a protagonista desta história. Ela tem o seu primeiro contato com o negro africano, Lemalian, ainda na balsa, quando os olhares se cruzam – seus nomes verdadeiros são Corinne e Lketinga. Carola e Lemalian são nomes fictícios criados para a realização do filme (HOFFMANN, 2011). Na sequência, no mercado de Mombasa, Lemalian impede um assalto em andamento que vitimizaria Carola e o seu então namorado, Stefan.
A primeira decisão alcantilada de Carola foi a de não voltar para a Suíça, mas permanecer no Quênia à procura de Lemalian. A determinação de ficar na África representa para ela um ato de coragem, não apenas por largar o seu mundo seguro, do trabalho, da família, do namorado, mas também por não temer os contrastes ao romper com o seu universo social para desbravar um mundo então incógnito. Ela própria se reconhece como uma pessoa que precisa de ordem, de uma visão clara das coisas. Entretanto, os odores, as cores, a mistura das pessoas, tudo isso lhe é estranho naquele lugar. Mesmo assim, o local lhe passa uma curiosa sensação de calma.
Desafiadora, Carola se engendra por áreas estranhas e hostis do Quênia que em nada reproduzem o seu cotidiano na Europa. Nas ruas de Mombasa ela procura por informações que a levem a Lemalian. Em seguida, já em Maralal, importante região das várias comunidades Samburu, encontra Elizabeth, uma mulher branca, também europeia e casada com um queniano, que a ajuda a percorrer a área comercial com uma foto do guerreiro tentando localizá-lo. Tarefa que não logrou êxito.
Depois de dez dias de cansativa espera, finalmente Lemalian surge, de pé na cerca da casa de Elizabeth, como um pastor que veio buscar o seu animal ou uma encomenda qualquer. Carola o segue sem nenhum questionamento e em um quarto simples o casal se relaciona intimamente, finalizados com o gozo masculino e o trauma feminino da relação sexual fria e sem prazer, do coito anal forçado, realizado apenas para a satisfação do guerreiro. Embaraçada, Carola deixa o quarto e Lemalian a procura interrogando-a com plena naturalidade se está tudo bem com ela. Carola responde que sim e então é chamada a ficar com ele. Ambos seguem para Barsaloi, povoado do seu grupo étnico.
Os dois experimentam a troca cultural. Apesar da narrativa ter sido produzida a partir do olhar feminino e europeu, é visível no filme o esforço de Lemalian para se aproximar dos padrões vividos por ela, principalmente quando estão fora dos olhares do grupo, inclusive com o rompimento de algumas tradições, como mostram as cenas em que fazem a refeição juntos, algo impraticável entre homens e mulheres Samburu, e quando ele se veste com roupas ocidentais para poder entrar no prédio de registro de imigração, e até mesmo quando praticam sexo com demonstrações de afetividade e carinho.
As cenas que apresentam as relações comerciais na loja de Carola também registram a dificuldade de Lemalian e dos Samburu em lidar com as regras do comércio. O dinheiro não tem a mesma importância para eles e as relações parentais e de amizade falam mais alto que as relações econômicas que regulam a necessidade do produto e o valor de mercado.
Ainda que trate da realidade de uma sociedade afastada, de pouco contato com a vida e os costumes urbanos, o filme registra a presença do Estado nesta localidade através da figura do subchefe, espécie de delegado da região, que intima Carola a ir embora ou se registrar para poder continuar ali, por ser proibida a moradia de pessoas brancas na aldeia. Em outro momento do filme, mostra-se a organização do poder na comunidade, através do julgamento promovido pelos homens mais velhos do grupo, uma espécie de conselho dos anciãos, com a presença de Carola, como parte envolvida no fato julgado, do padre como tradutor, e também de Lemalian, um pouco mais afastado e contemplativo. Nesta cena, o conselho decide que Carola deve indenizar o subchefe com duas cabras por ter demitido o seu sobrinho da loja. Ao mesmo tempo, o subchefe é condenado a pagar cinco cabras pela agressão praticada pelo seu sobrinho contra Carola.
O contato amistoso de Carola com os clientes de sua loja, incluindo o sorriso e o olhar nos olhos, aguça o ciúme do seu marido. Alguns homens são acusados pelo humilhado guerreiro de terem relacionamento com Carola. Acusada de traição, ela leva um tapa no rosto e revida instantaneamente batendo no guerreiro diante de homens, mulheres e crianças que presenciavam a contenda. Diminuído diante de sua comunidade, Lemalian tira o traje típico de guerreiro e corta os cabelos. Este acontecimento é acompanhado de ameaças a Carola e de agressão ao padre dentro da loja.
A inviabilidade de continuarem vivendo juntos leva Carola a providenciar sua volta para a Suíça, levando a filha sob o argumento de que a criança iria conhecer a avó materna. Receoso em assinar a autorização para o embarque da filha, Lemalian questiona insistentemente se Carola pretende voltar. No instante da partida ele afirma saber que ela não voltará. Assim se dá o encerramento de uma história de coragem e troca entre duas culturas tão afastadas, representadas por duas vidas tão próximas.
Com a abordagem de conteúdos culturais que permitem a compreensão dos fatos, a comparação entre diferentes grupos e a narrativa contextualizada, o filme A Massai Branca permite uma linguagem em ação que pode ser facilmente utilizada como prática discursiva. Por meio dessa linguagem o filme produz sentidos sobre a distinção de gêneros, de culturas e de papéis, numa narrativa construída, enquanto prática cultural e discursiva, que possibilita uma multiplicidade de representações e percepções sobre o mundo e sobre as ações dos sujeitos envolvidos.
Sua personagem central está inserida em um novo contexto, contemplando situações adversas aos seus hábitos e que lhe cobram respostas imediatas e ao mesmo tempo adequadas ao seu novo grupo de convívio. A assimilação de uma nova cultura não é um processo rápido e simples, por isso os frequentes estranhamentos de Carola. Neste caso, o estranhamento significa um espanto diante de algo que não se conhece. Por achar estranho ou sentir-se incomodado diante do novo, ou por não se conformar com a realidade presenciada, o sujeito é incentivado a não se acomodar. Aqui o estranhamento, num primeiro momento, suscita a rejeição, quando o sentido de estranhar o que não é normal, ou comum, significa não se conformar, mas buscar uma postura de resistência. Por outro lado, este estranhamento produz uma sensação de incômodo e a necessidade de encontrar mais informações que orientem na compreensão do diferente, no entendimento daquela realidade, sendo assim uma forma de ir além das primeiras impressões e das primeiras respostas balizadas pelo senso comum.
A assimilação representa um ajustamento interno do próprio sujeito em adequação a uma nova realidade. Trata-se de um processo social de integração do indivíduo a um grupo diferente, onde o sujeito adquire e acolhe os padrões comportamentais e as tradições coletivamente aceitas. Daí o esforço de Carola em se adaptar a certas regras do seu novo grupo social, mesmo contrariando sua formação europeia. Ao mesmo tempo em que se registra na narrativa uma mulher independente, corajosa e reguladora de suas próprias decisões, também se assiste ao ideário romântico de uma jovem que se submete às regras grupais e ao controle machista do seu marido. A decisão de ficar no Quênia, seguir o Samburu, comprar um carro e abrir uma loja em Barsaloi, está diretamente associada ao romantismo sonhado de Carola. Neste sentido, as decisões observadas como possíveis práticas de autonomia do sujeito, como medidas estritamente racionais, não descartam o âmbito emocional, nem desprezam o sentido coletivo, mesmo das ações individuais. Carola, assim com Elizabeth, personagens femininas de destaque no filme, são mulheres que abandonaram família, amigos e estilos de vida na busca do homem dos sonhos, do ideal amor romântico, e ainda que fortes, precisam se mostrar subservientes diante do marido e deste novo modo de vida voluntariamente adotado.
Mesmo quando contesta a mutilação genital, a partir dos valores culturais de sua formação primária, Carola percebe a limitação de sua oposição a uma regra tradicionalmente estabelecida e aceita pelo grupo. Na cena, o padre também reconhece a prática como abominável, mas reitera a necessidade de não contestar os costumes locais, o que mostra a dificuldade dos agentes externos em se desvencilhar dos ritos de sua cultura de formação para aceitar os ritos de outras. Sobre esta temática, há uma outra concepção sobre a mutilação genital feminina que é defendida pelos relativistas culturais. Para esses, as influências ocidentais que interferem nessa prática são intervenções etnocêntricas que reprimem as culturas africanas. Os relativistas culturais argumentam que os discursos sobre os direitos humanos universais negam a soberania cultural dos povos menos poderosos, comprometendo a tolerância e o multiculturalismo, e promovem atitudes racistas (BRYM, 2006).
Também chocam as imagens da mulher grávida caída ao chão em trabalho de parto, sendo observada por pessoas que se recusam a ajudá-la. Em seu socorro, Carola pede auxílio a Lemalian, que após relutar a atende, mesmo justificando que aquela mulher não poderia ser tocada por estar enfeitiçada. O choque ocorre por revelar regras que são naturalmente aceitas naquele grupo, mas se colidem com as regras culturais difundidas nas demais sociedades. É que cada sistema cultural tem sua própria lógica e tentar transferir a lógica de um sistema para outro não passa de um ato primário de etnocentrismo. Há uma prática comum nas sociedades industrializadas em considerar lógico apenas o seu próprio sistema cultural, enquanto se atribui aos demais um alto grau de irracionalismo (LARAIA, 2003). Para Lemalian, tocar aquela mulher enfeitiçada e se contaminar representa um esforço tão grande quanto o praticado por Carola ao renunciar suas origens para viver naquele ambiente.
De uma forma geral, a narrativa do filme provoca o sentimento de assimilação ou estranhamento dos ritos diferentes e exóticos, estimulando práticas discursivas sobre os temas nele abordados. Possibilita, ainda, a reflexão sobre diferentes formações culturais e permite o conhecimento, ainda que superficial, dos costumes de um grupo tipicamente africano, de uma cultura de resistência na preservação do seu estado original, quase sem hibridismo, de baixo envolvimento com a cultura ocidental e sem reflexo do consumismo do modelo globalizado.

Érica Barbosa é Mestre em Geografia, professora do Colégio de Aplicação do Centro de Educação da UFPE.
Erinaldo Ferreira é Doutor em Ciência Política, professor de Sociologia do Colégio de Aplicação do Centro de Educação da UFPE

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