Família Guarani e Kaiowá vivendo à margem de uma rodovia |
Um
dos principais empecilhos à sobrevivência dos povos indígenas no Brasil é a demarcação
de suas terras, motivo gerador de muitos conflitos. Porém, os procedimentos
jurídicos e administrativos levam muito tempo e certas tribos, como os Guarani
e Kaiowá, recorrem a órgãos internacionais para assegurar esse e outros
direitos essenciais. Enquanto isso, eles enfrentam violência e intolerância em
várias frentes, protagonizados por fazendeiros, pistoleiros, madeireiros e
políticos. A reportagem a seguir, do portal Adital,
mostra o percurso do líder indígena Elizeu Lopes em busca do apoio
internacional. (Giovana Ferreira)
Sem apoio do governo brasileiro, Guarani e Kaiowá
buscam solidariedade internacional
Gean Rocha
Elizeu Lopes, líder indígena do povo Guarani-Kaiowá, no Estado do Mato
Grosso do Sul, concedeu, recentemente, uma entrevista na sede do Instituto
Socioambiental, em São Paulo, para falar sobre os ataques frequentes e
violentos de fazendeiros contra comunidades indígenas, bem como sobre o
encaminhamento das denúncias às organizações e organismos internacionais, a
exemplo do Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU),
em Genebra.
Lopes viajou pela Suíça, Alemanha, Bélgica e Itália, encontrou-se com
ativistas de entidades de defesa dos direitos humanos, com equipes das
relatorias especiais da ONU, inclusive, com a que trata especificamente dos
direitos dos povos indígenas. Também esteve com o núncio Papal no Vaticano e
com deputados do parlamento europeu. Ele voltou a São Paulo para seguir
denunciando a intensa violência a que seu povo tem sido submetido.
"Convidamos a relatora da ONU, Victoria Tauli-Corpous, três vezes
para vir ao Brasil, mas precisa que o governo a convide para que ela faça esta
visita. Queremos a vinda de uma comissão de parlamentares europeus também, para
ver toda a nossa realidade” afirma Lopes.
Durante os meses de agosto e setembro deste ano, ocorreram mais de 10
ataques paramilitares contra o povo Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul,
protagonizados por fazendeiros organizados em milícias armadas. Os ataques
resultaram no assassinato do líder Guarani-Kaiowá Semião Vilhalva, três
indígenas foram baleados por armas de fogo, vários foram feridos por balas de
borracha e dezenas de indígenas foram espancados. Também são fortes os indícios
de que indígenas sofreram torturas e há denúncias da ocorrência de um estupro
coletivo contra uma mulher Guarani-Kaiowá. Lopes também denuncia o envolvimento
da polícia e de políticos locais nos ataques.
"Hoje, nós, Guarani e Kaiowá, estamos em guerra. Estamos
enfrentando grandes fazendeiros, pistoleiros, políticos e a polícia de peito
aberto para defender que nós tenhamos nosso espaço”, ressalta o líder indígena.
Contexto
A demarcação de terras é uma das principais questões que levam ao
conflito no campo. Atualmente, a reivindicação de demarcações feita pelos
Guarani e Kaiowá, já reduzidas, totaliza apenas 2,5% das terras que
originalmente seriam do povo indígena. Com os procedimentos de demarcação
paralisados, cerca de 45 mil Guarani-Kaiowá continuam vivendo em apenas 30 mil
hectares de suas terras tradicionais.
Segundo Lopes, por esse motivo, os povos indígenas passaram a ocupar e
viver nas terras onde existe conflito, almejando mais áreas livres. "Lá, a
gente tem pelo menos espaço para produzir, para o sustento próprio, para
garantir o sustento e não depender de cestas básicas”.
Não é a primeira vez, este ano, que os Guarani e Kaiowá apresentam suas
denúncias a organismos internacionais. Em abril último, Elizeu Lopes
participou, juntamente com outras lideranças da Articulação dos Povos Indígenas
do Brasil [Apib], do Fórum Permanente para Questões Indígenas da Organização da
ONU, em Nova York [EUA], onde discursou sobre a violência cometida pelos
fazendeiros e o descaso do Estado.
"Na região em que vivo, de 2003 a 2013, houve pelo menos 150
conflitos entre o meu povo e fazendeiros da região. Nesse período, tivemos pelo
menos 15 grandes lideranças assassinadas, a maior quantidade do país, cujos
inquéritos policiais não resultaram em nada”.
Em julho último, Lopes esteve no Encontro Mundial de Movimentos
Populares, em La Paz, na Bolívia, onde se encontrou pessoalmente com o Papa
Francisco. "Ele me recebeu com um sorriso, estendeu a mão e me escutou,
coisa que a presidenta [Dilma Rousseff] e os governantes brasileiros, mesmo
sabendo da nossa situação, nunca fizeram e se negam a fazer. Eu pedi a ele que
interceda por nós, que ajude a fazer o governo brasileiro cumprir a
Constituição e demarcar nossos territórios, que o próprio poder Executivo
paralisou”.
Preocupações
da ONU
Uma das preocupações expressas pelas seis Relatorias Especiais de
Direitos Humanos da ONU, que estiveram reunidas com Lopes, em Genebra, é,
justamente, a definição de qual delas poderá receber o caso Guarani e Kaiowá.
Isto significa que a situação de violação de direitos deste povo é tão grave e
extensa que pode ser acompanhada por todas as Relatorias com as quais o líder
se reuniu: Direito à Alimentação; Pessoas Internamente Deslocadas; Violência
contra a Mulher; Defensores dos Direitos Humanos; Movimento Ilícito de Resíduos
Tóxicos; e, logicamente, a de Povos Indígenas. Há ainda a possibilidade do caso
Guarani e Kaiowá ser acompanhado, mais de perto, pela Relatoria Especial de
Discriminação Racial.
Essas reuniões fazem parte da programação de incidência internacional
da causa dos Guarani e Koiwá na Suíça, Alemanha, Bélgica e Itália. Esta
incidência é uma iniciativa do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e das
organizações Franciscanos Internacional, Rede de Ação e Informação
"Alimentação Primeiro” [Fian-Brasil], Anistia Internacional e Justiça
Global, além da agência de cooperação DKA.
Elizeu Lopes também denuncia o fato de que até mesmo representantes do
Estado tiveram participação no recente ataque paramilitar ao tekoha [lugar onde
se é] Ñanderú Marangatú, que culminou com o assassinato de Semião Vilhalva, de
24 anos. Ele declara que a própria imprensa documentou a participação de
vereadores, deputados e até de um membro do Senado na reunião que antecedeu o
ataque.
"Alguns chegaram até mesmo a ir à área ocupada pela comunidade.
Essa tragédia mostra, mais uma vez, que a vida de um indígena no Brasil vale
menos do que a de uma vaca. Nós estamos reivindicando menos terra do que temos
direito, garantido pela Constituição, mas a opção do Estado brasileiro é clara
em sua defesa exclusiva dos interesses do agronegócio. Tentam nos empurrar as
Mesas de Diálogo, quando sabemos que a única solução para acabar com a
violência é a demarcação dos nossos territórios tradicionais”, explica Lopes.
Segundo Flávio Machado, missionário da Regional do Cimi em Mato Grosso
do Sul, que acompanhou Lopes na agenda de incidência na Europa, foi deixado
claro aos relatores da ONU que, caso não seja feita a demarcação das terras,
não é possível ter controle sobre a comunidade. "A autodemarcação é um
consenso e uma decisão desesperada de toda a comunidade de lutar pela vida.
Eles não conseguem mais sobreviver na beira das rodovias e não suportam mais o
sofrimento da fome e o choro de suas crianças”, observa Machado.
Lopes pediu ainda uma atuação conjunta das relatorias e que elas
incidam sobre os acordos comerciais de empresas multinacionais e bancos de
investimentos com o agronegócio do Mato Grosso do Sul, de modo que sejam
condicionados à demarcação e devolução dos territórios tradicionais indígenas.
As equipes das relatorias afirmaram que vão estudar formas de
contribuírem para combater a situação de extrema violação de direitos humanos
do povo Guarani e Kaiowá. Também assumiram o compromisso de sensibilizarem
outros mandatos da ONU sobre a situação, além de sinalizarem com a
possibilidade de questionarem o governo brasileiro e solicitarem mais
informações sobre a realidade desse povo, que forma a segunda maior população
indígena do país.
De acordo com a avaliação de
Flávio Machado, a situação chegou a tal ponto que não há mais condições do
Estado brasileiro negar os direitos constitucionais dos Guarani-Kaiowá.
"Se o agronegócio só entende a linguagem econômica, que se parta deste
princípio para solucionar, definitivamente, o problema. O Estado deve adotar
sanções e punições para quem não cumpre a lei. Por outro lado, o Cimi tem o
dever de denunciar um futuro bastante grave no Mato Grosso do Sul caso não se
mude, urgentemente, a postura omissa do Estado. O Ministério da Justiça tem que
cumprir sua obrigação constitucional de demarcar as terras tradicionais, de uma
vez por todas”, conclui.
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