Há quem desconheça, mas
existe uma Declaração sobre a Diversidade Cultural, que garante a todos os
cidadãos o direito à cultura de forma diversificada e livre. Uma Declaração de
direitos dos cidadãos é uma lista de direitos considerados importantes ou essenciais
para um grupo de pessoas, caracterizando, assim, um direito que também está na Constituição
da UNESCO “(...) que a ampla difusão da cultura e da educação da humanidade
para a justiça, a liberdade e a paz são indispensáveis para a dignidade do
homem e constituem um dever sagrado que todas as nações devem cumprir com um
espírito de responsabilidade e de ajuda mútua”.
(Gabriella Mayara)
DECLARAÇÃO UNIVERSAL
SOBRE A DIVERSIDADE CULTURAL 2002
A Conferência Geral,
Reafirmando seu compromisso com a
plena realização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamadas
na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em outros instrumentos
universalmente reconhecidos, como os dois Pactos Internacionais de 1966
relativos respectivamente, aos direitos civis e políticos e aos direitos
econômicos, sociais e culturais,
Recordando que o Preâmbulo da
Constituição da UNESCO afirma “(...) que a ampla difusão da cultura e da
educação da humanidade para a justiça, a liberdade e a paz são indispensáveis
para a dignidade do homem e constituem um dever sagrado que todas as nações
devem cumprir com um espírito de responsabilidade e de ajuda mútua”,
Recordando também seu Artigo
primeiro, que designa à UNESCO, entre outros objetivos, o de recomendar “os
acordos internacionais que se façam necessários para facilitar a livre
circulação das idéias por meio da palavra e da imagem”,
Referindo-se às disposições
relativas à diversidade cultural e ao exercício dos direitos culturais que figuram
nos instrumentos internacionais promulgados pela UNESCO[1],
Reafirmando que a cultura deve
ser considerada como o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais,
intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que
abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver
juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças[2],
Constatando que a cultura se
encontra no centro dos debates contemporâneos sobre a identidade, a coesão
social e o desenvolvimento de uma economia fundada no saber,
Afirmando que o respeito à
diversidade das culturas, à tolerância, ao diálogo e à cooperação, em um clima
de confiança e de entendimento mútuos, estão entre as melhores garantias da paz
e da segurança internacionais,
Aspirando a uma maior
solidariedade fundada no reconhecimento da diversidade cultural, na consciência
da unidade do gênero humano e no desenvolvimento dos intercâmbios culturais,
Considerando que o processo de
globalização, facilitado pela rápida evolução das novas tecnologias da
informação e da comunicação, apesar de constituir um desafio para a diversidade
cultural, cria condições de um diálogo renovado entre as culturas e as
civilizações,
Consciente do mandato específico
confiado à UNESCO, no seio do sistema das Nações Unidas, de assegurar a
preservação e a promoção da fecunda diversidade das culturas,
Proclama os seguintes
princípios e adota a presente Declaração:
IDENTIDADE, DIVERSIDADE E PLURALISMO
Artigo 1 – A diversidade cultural,
patrimônio comum da humanidade
A cultura adquire formas diversas
através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e
na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem
a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a
diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade
biológica para a natureza.
Nesse sentido, constitui o patrimônio
comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das
gerações presentes e futuras.
Artigo 2 – Da diversidade cultural ao
pluralismo cultural
Em nossas sociedades cada vez mais
diversificadas, torna-se indispensável garantir uma interação harmoniosa entre
pessoas e grupos com identidades culturais a um só tempo plurais, variadas e dinâmicas,
assim como sua vontade de conviver. As políticas que favoreçam a inclusão e a participação
de todos os cidadãos garantem a coesão social, a vitalidade da sociedade civil
e a paz. Definido desta maneira, o pluralismo cultural constitui a resposta política
à realidade da diversidade cultural. Inseparável de um contexto democrático, o
pluralismo cultural é propício aos intercâmbios culturais e ao desenvolvimento
das capacidades criadoras que alimentam a vida pública.
Artigo 3 – A diversidade cultural,
fator de desenvolvimento
A diversidade cultural amplia as
possibilidades de escolha que se oferecem a todos; é uma das fontes do
desenvolvimento, entendido não somente em termos de crescimento econômico, mas também
como meio de acesso a uma existência intelectual, afetiva, moral e espiritual
satisfatória.
DIVERSIDADE CULTURAL E DIREITOS
HUMANOS
Artigo 4 – Os direitos humanos,
garantias da diversidade cultural
A defesa da diversidade cultural é um
imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade humana. Ela implica o
compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em
particular os direitos das pessoas que pertencem a minorias e os dos povos autóctones.
Ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos garantidos
pelo direito internacional, nem para limitar seu alcance.
Artigo 5 – Os direitos culturais,
marco propício da diversidade cultural
Os direitos culturais são parte
integrante dos direitos humanos, que são universais, indissociáveis e interdependentes.
O desenvolvimento de uma diversidade criativa exige a plena realização dos direitos
culturais, tal como os define o Artigo 27 da Declaração Universal de Direitos
Humanos e os artigos 13 e 15 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais. Toda pessoa deve, assim, poder expressar-se, criar e difundir suas
obras na língua que deseje e, em partícular, na sua língua materna; toda pessoa
tem direito a uma educação e uma formação de qualidade que respeite plenamente
sua identidade cultural; toda pessoa deve poder participar na vida cultural que
escolha e exercer suas próprias práticas culturais, dentro dos limites que
impõe o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais.
Artigo 6 – Rumo a uma diversidade
cultural accessível a todos
Enquanto se garanta a livre circulação
das idéias mediante a palavra e a imagem, deve-se cuidar para que todas as
culturas possam se expressar e se fazer conhecidas. A liberdade de expressão, o
pluralismo dos meios de comunicação, o multilingüismo, a igualdade de acesso às
expressões artísticas, ao conhecimento científico e tecnológico – inclusive em
formato digital - e a possibilidade, para todas as culturas, de estar presentes
nos meios de expressão e de difusão, são garantias da diversidade cultural.
DIVERSIDADE CULTURAL E CRIATIVIDADE
Artigo 7 – O patrimônio cultural,
fonte da criatividade
Toda criação tem suas origens nas
tradições culturais, porém se desenvolve plenamente em contato com outras. Essa
é a razão pela qual o patrimônio, em todas suas formas, deve ser preservado,
valorizado e transmitido às gerações futuras como testemunho da experiência e
das aspirações humanas, a fim de nutrir a criatividade em toda sua diversidade
e estabelecer um verdadeiro diálogo entre as culturas.
Artigo 8 – Os bens e serviços
culturais, mercadorias distintas das demais
Frente às mudanças econômicas e
tecnológicas atuais, que abrem vastas perspectivas para a criação e a inovação,
deve-se prestar uma particular atenção à diversidade da oferta criativa, ao justo
reconhecimento dos direitos dos autores e artistas, assim como ao caráter
específico dos bens e serviços culturais que, na medida em que são portadores
de identidade, de valores e sentido, não devem ser considerados como
mercadorias ou bens de consumo como os demais.
Artigo 9 – As políticas culturais,
catalisadoras da criatividade
As políticas culturais, enquanto
assegurem a livre circulação das idéias e das obras, devem criar condições
propícias para a produção e a difusão de bens e serviços culturais
diversificados, por meio de indústrias culturais que disponham de meios para
desenvolver-se nos planos local e mundial. Cada Estado deve, respeitando suas
obrigações internacionais, definir sua política cultural e aplicá-la,
utilizando-se dos meios de ação que julgue mais adequados, seja na forma de apoios
concretos ou de marcos reguladores apropriados.
DIVERSIDADE CULTURAL E SOLIDARIEDADE
INTERNACIONAL
Artigo 10 – Reforçar as capacidades de
criação e de difusão em escala mundial
Ante os desequilíbrios atualmente
produzidos no fluxo e no intercâmbio de bens culturais em escala mundial, é
necessário reforçar a cooperação e a solidariedade internacionais destinadas a permitir
que todos os países, em particular os países em desenvolvimento e os países em transição,
estabeleçam indústrias culturais viáveis e competitivas nos planos nacional e internacional.
Artigo 11 – Estabelecer parcerias
entre o setor público, o setor privado e a sociedade civil
As forças do mercado, por si sós, não
podem garantir a preservação e promoção da diversidade cultural, condição de um
desenvolvimento humano sustentável. Desse ponto de vista, convém fortalecer a
função primordial das políticas públicas, em parceria com o setor privado e a
sociedade civil.
Artigo 12 – A função da UNESCO
A UNESCO, por virtude de seu mandato e
de suas funções, tem a responsabilidade de:
a) promover a incorporação dos
princípios enunciados na presente Declaração nas estratégias de desenvolvimento
elaboradas no seio das diversas entidades intergovernamentais;
b) servir de instância de referência e
de articulação entre os Estados, os organismos internacionais governamentais e
não-governamentais, a sociedade civil e o setor privado para a elaboração conjunta
de conceitos, objetivos e políticas em favor da diversidade cultural;
c) dar seguimento a suas atividades
normativas, de sensibilização e de desenvolvimento de capacidades nos âmbitos
relacionados com a presente Declaração dentro de suas esferas de competência;
d) facilitar a aplicação do Plano de
Ação, cujas linhas gerais se encontram apensas à presente Declaração.
LINHAS GERAIS DE UM PLANO DE AÇÃO PARA
A APLICAÇÃO DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DA UNESCO SOBRE A DIVERSIDADE CULTURAL
Os Estados Membros se
comprometem a tomar as medidas apropriadas para difundir amplamente a
Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural e fomentar sua
aplicação efetiva, cooperando, em particular, com vistas à realização dos
seguintes objetivos:
1. Aprofundar o debate internacional
sobre os problemas relativos à diversidade cultural, especialmente os que se
referem a seus vínculos com o desenvolvimento e a sua influência na formulação
de políticas, em escala tanto nacional como internacional; Aprofundar, em
particular, a reflexão sobre a conveniência de elaborar um instrumento jurídico
internacional sobre a diversidade cultural.
2. Avançar na definição dos
princípios, normas e práticas nos planos nacional e internacional, assim como
dos meios de sensibilização e das formas de cooperação mais propícios à salvaguarda
e à promoção da diversidade cultural.
3. Favorecer o intercâmbio de
conhecimentos e de práticas recomendáveis em matéria de pluralismo cultural,
com vistas a facilitar, em sociedades diversificadas, a inclusão e a
participação de pessoas e grupos advindos de horizontes culturais variados.
4. Avançar na compreensão e no
esclarecimento do conteúdo dos direitos culturais, considerados como parte
integrante dos direitos humanos.
5. Salvaguardar o patrimônio
lingüístico da humanidade e apoiar a expressão, a criação e a difusão no maior
número possível de línguas.
6. Fomentar a diversidade lingüística
- respeitando a língua materna - em todos os níveis da educação, onde quer que
seja possível, e estimular a aprendizagem do plurilingüismo desde a mais jovem
idade.
7. Promover, por meio da educação, uma
tomada de consciência do valor positivo da diversidade cultural e aperfeiçoar,
com esse fim, tanto a formulação dos programas escolares como a formação dos
docentes.
8. Incorporar ao processo educativo,
tanto o quanto necessário, métodos pedagógicos tradicionais, com o fim de
preservar e otimizar os métodos culturalmente adequados para a comunicação e a
transmissão do saber.
9. Fomentar a “alfabetização digital”
e aumentar o domínio das novas tecnologias da informação e da comunicação, que
devem ser consideradas, ao mesmo tempo, disciplinas de ensino e instrumentos
pedagógicos capazes de fortalecer a eficácia dos serviços educativos.
10. Promover a diversidade lingüística
no ciberespaço e fomentar o acesso gratuito e universal, por meio das redes
mundiais, a todas as informações pertencentes ao domínio público.
11. Lutar contra o hiato digital - em
estreita cooperação com os organismos competentes do sistema das Nações Unidas
- favorecendo o acesso dos países em desenvolvimento às novas tecnologias,
ajudando-os a dominar as tecnologias da informação e facilitando a circulação eletrônica
dos produtos culturais endógenos e o acesso de tais países aos recursos
digitais de ordem educativa, cultural e científica, disponíveis em escala
mundial.
12. Estimular a produção, a
salvaguarda e a difusão de conteúdos diversificados nos meios de comunicação e
nas redes mundiais de informação e, para tanto, promover o papel dos serviços públicos
de radiodifusão e de televisão na elaboração de produções audiovisuais de
qualidade, favorecendo, particularmente, o estabelecimento de mecanismos de
cooperação que facilitem a difusão das mesmas.
13. Elaborar políticas e estratégias
de preservação e valorização do patrimônio cultural e natural, em particular do
patrimônio oral e imaterial e combater o tráfico ilícito de bens e serviços
culturais.
14. Respeitar e proteger os sistemas
de conhecimento tradicionais, especialmente os das populações autóctones;
reconhecer a contribuição dos conhecimentos tradicionais para a proteção ambiental
e a gestão dos recursos naturais e favorecer as sinergias entre a ciência
moderna e os conhecimentos locais.
15. Apoiar a mobilidade de criadores,
artistas, pesquisadores, cientistas e intelectuais e o desenvolvimento de
programas e associações internacionais de pesquisa, procurando, ao mesmo tempo,
preservar e aumentar a capacidade criativa dos países em desenvolvimento e em transição.
16. Garantir a proteção dos direitos
de autor e dos direitos conexos, de modo a fomentar o desenvolvimento da
criatividade contemporânea e uma remuneração justa do trabalho criativo, defendendo,
ao mesmo tempo, o direito público de acesso à cultura, conforme o Artigo 27 da Declaração
Universal de Direitos Humanos.
17. Ajudar a criação ou a consolidação
de indústrias culturais nos países em desenvolvimento e nos países em transição
e, com este propósito, cooperar para desenvolvimento das infra-estruturas e das
capacidades necessárias, apoiar a criação de mercados locais viáveis e
facilitar o acesso dos bens culturais desses países ao mercado mundial e às
redes de distribuição internacionais.
18. Elaborar políticas culturais que
promovam os princípios inscritos na presente Declaração, inclusive mediante mecanismos
de apoio à execução e/ou de marcos reguladores apropriados, respeitando as
obrigações internacionais de cada Estado.
19. Envolver os diferentes setores da
sociedade civil na definição das políticas públicas de salvaguarda e promoção
da diversidade cultural.
20. Reconhecer e fomentar a
contribuição que o setor privado pode aportar à valorização da diversidade
cultural e facilitar, com esse propósito, a criação de espaços de diálogo entre
o setor público e o privado.
Os Estados Membros
recomendam ao Diretor Geral que, ao executar os programas da UNESCO, leve em
consideração os objetivos enunciados no presente Plano de Ação e que o
comunique aos organismos do sistema das Nações Unidas e demais organizações
intergovernamentais e nãogovernamentais interessadas, de modo a reforçar a
sinergia das medidas que sejam adotadas em favor da diversidade cultural.
[1] Entre os quais figuram, em
particular, o acordo de Florença de 1950 e seu Protocolo de Nairobi de 1976, a
Convenção Universal sobre Direitos de Autor, de 1952, a Declaração dos
Princípios de Cooperação Cultural Internacional de 1966, a Convenção sobre as
Medidas que Devem Adotar-se para Proibir e Impedir a Importação, a Exportação e
a Transferência de Propriedade Ilícita de Bens Culturais, de 1970, a Convenção
para a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural de 1972, a Declaração
da UNESCO sobre a Raça e os Preconceitos Raciais, de 1978, a Recomendação
relativa à condição do Artista, de 1980 e a Recomendação sobre a Salvaguarda da
Cultura Tradicional e Popular, de 1989.
[2] Definição conforme as conclusões da
Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais (MONDIACULT, México, 1982), da
Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento (Nossa Diversidade Criadora,
1995) e da Conferência Intergovernamental sobre Políticas Culturais para o
Desenvolvimento (Estocolmo, 1998).